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Como as mulheres sofrem ao serem culpadas pelo vazamento de conteúdo íntimo, quando o foco deveria ser o comportamento dos agressores
A jornalista Rose Leonel estava aproveitando as férias em um resort em Foz do Iguaçu/PR, em 2006, quando durante o café da manhã o celular tocou. Do outro lado da linha, um amigo perguntando o que estava acontecendo. Confusa, Rose foi tentando entender. Depois de alguns segundos de conversa, descobriu que centenas de pessoas de Maringá, Paraná, cidade onde ela trabalhava e morava, receberam um e-mail com fotos íntimas dela. Rose não era uma anônima na região: escrevia uma coluna para um jornal e apresentava um programa de televisão. A vida da jornalista mudou completamente a partir dali. Perdeu o emprego e teve que enviar o filho, na época com 12 anos, para morar com o pai no exterior.
Ela foi vítima da chamada pornografia de vingança, termo em português para revenge porn. As fotos foram enviadas para colegas de trabalho e amigos da jornalista pelo ex-namorado, um empresário com quem ela tinha rompido dois meses antes ao ocorrido. O relacionamento tinha durado quatro anos, mas ao ser pedida em casamento Rose decidiu acabar com o namoro. “Começou a maltratar meus filhos, gritando e humilhando. Desconfiei do caráter e do autocontrole emocional dele”, conta.
Com a rejeição, começaram os ataques. O homem enviava as fotos em apresentações de slides anexadas nas mensagens. Com tom irônico, intitulou o primeiro como: ‘Apresentando a colunista social Rose Leonel – Capítulo 1’. O pesadelo da jornalista durou mais de três anos e ganhou muitos outros capítulos, que iam sendo enviados na sequência: Capítulo 2, Capítulo 3, Capítulo 4, e assim por diante. Quando não tinha mais fotos íntimas de Rose para enviar, o homem começou a disparar montagens usando apenas o rosto da jornalista. Além disso, colocava na descrição o telefone pessoal dela e insinuava nas redes sociais que se tratava de uma garota de programa.
Rose moveu um processo contra ele na Justiça, mas o ex-namorado pagou uma multa de R$ 3 mil e foi liberado. Por vingança, passou a atacá-la novamente. Rose moveu vários processos contra o homem. Ele precisou entregar computadores para os investigadores, além de ter ficado proibido de chegar a menos de 500 metros da jornalista e dos filhos dela. Cerca de quatro anos depois do crime, ele foi condenado a cumprir pena de quase dois anos de detenção, com adicional de um pagamento de R$ 1,2 mil por mês a ela. Chegou a recorrer da sentença, mas perdeu.
“Com a condenação, eu fiquei mais forte. Essa decisão me trouxe um alívio moral. Tenho orgulho de lutar contra a discriminação, a falta de informação, o preconceito e o machismo.”
ONG Marias da Internet
Ciente de todo o sofrimento pelo qual passou e tocada pela situação de centenas de outras mulheres, Rose fundou, em 2013, a ONG Marias da Internet. O objetivo é o acolhimento e a orientação para quem passa por situações assim. Hoje, a organização atende dezenas de casos por mês. “A vítima de divulgação de imagem íntima não autorizada é totalmente aniquilada. Não havia uma instituição no Brasil que pudesse dar conta dessas vítimas que são frágeis e têm a vida totalmente dilacerada, por isso eu decidi ter essa iniciativa”, argumenta a jornalista.
Para ela, o vazamento de fotos e vídeos íntimos atinge fatalmente o sexo feminino, pela condição intrínseca de ser mulher, já que as vítimas acabam sendo condenadas e punidas pela sociedade. “No meu caso, eu fui excluída socialmente, sofri uma morte civil. Perdi meu trabalho, amigos, profissão, tudo. Até meu filho foi embora do país. Com tanta falta de informação, foi o que eu sofri na pele. Não havia uma instituição apropriada. Foi quando eu tive essa ideia e prometi a mim mesma que, assim que conseguisse criaria uma instituição no Brasil para cuidar dessas vítimas. Isso não é justo com as mulheres, que acabam violentadas a cada clique nas imagens”, destaca.
A ONG Marias da Internet já atendeu mulheres em todo o Brasil e até mesmo brasileiras fora do país, morando em locais como Grécia, Japão e Portugal. A equipe é formada por advogados, especialistas em direito digital, investidores e profissionais da psicologia, que realizam o atendimento e acolhimento das vítimas. “Muitas mulheres têm o pensamento recorrente de tirar a vida quando são expostas publicamente de forma tão cruel. Nosso papel é mostrar que elas merecem respeito de toda a sociedade e que a justiça pode ser feita”, resume Rose.
Lei Rose Leonel
Em dezembro de 2018 entrou em vigor a Lei 13.772, conhecida como Lei Rose Leonel, por causa da história da jornalista. A legislação passou a criminalizar o registro de imagens íntimas sem consentimento e alterou a Lei Maria da Penha, reconhecendo a violação da intimidade da mulher como violência doméstica. A pena é detenção, de seis meses a um ano, e multa. Na mesma pena incorre quem realiza montagens com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual, ou libidinoso de caráter íntimo.
Os legisladores também entenderam a necessidade de tipificar a ‘divulgação’ das imagens íntimas de vítimas sem consentimento, uma vez que a Lei Rose Leonel direcionava a penalização somente para os registros destas fotos. Dessa forma, também no ano de 2018 criou-se a Lei nº 13.718/18, que originou o artigo 218 – para tipificar a conduta de oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir publicar ou divulgar conteúdos que contenham cena de estupro ou de estupro de vulnerável. A lei também tipifica materiais que façam apologia ou induzam a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia.
Não existe anonimato
Ao contrário do que muita gente pensa, ninguém entra ou sai da internet sem deixar um rastro. De acordo com a delegada de Polícia Civil Vivian Garcia Selig, a Justiça está atenta a estas inovações.
“A primeira providência por parte da vítima é o registro da ocorrência com a maior brevidade, especificidade e detalhes possíveis”, alerta.
A advogada Priscila Jenifer F. Bertolina, especialista em direito digital aplicado e proteção de dados pessoais, indica que as vítimas levem o máximo de informações possíveis para facilitar as investigações. É preciso incluir prints, além das URLs – link disponível na janela de acesso do website, como http://(site).com.br. “Assim a gente consegue ingressar com ação para notificar um provedor de aplicação, que pode ser uma rede social ou plataforma de e-mail, para, mediante a ordem judicial, nos fornecerem o registro de acesso daquele usuário, denominado endereço IP. A partir destes dados, é possível se comunicar, posteriormente, com o provedor de conexão, que é a empresa que fornece a internet. Depois já é possível chegar nas informações para identificar o agressor”.
O Marco Civil da Internet – Lei n. 12.965 –, que entrou em vigor em 2014, foi muito importante para estabelecer várias questões para o uso da rede no Brasil. Uma das garantias é a retirada imediata de conteúdo de nudez ou sexo, pelos provedores de aplicação, após mera notificação da vítima ou de seu representante legal, sob pena de responder, subsidiariamente, pela violação da intimidade.
“No caso do revenge porn, não precisa de uma determinação judicial para derrubar o conteúdo. Na verdade, o primeiro passo é a vítima fazer o pedido pelo canal de denúncia do próprio provedor de aplicação – ou rede social –, de onde quer que o conteúdo seja retirado. Caso não haja resposta, ingressamos com ação judicial para as providências cabíveis, sob pena de responsabilização subsidiária”, revela a especialista em direito digital aplicado.
Mesmo que a foto ou vídeo tenha viralizado por várias páginas de uma mesma rede social, é possível tirar todo o conteúdo de uma vez só quando a vítima apresenta todas as URL’s que disponibilizam as imagens, pois assim facilita a remoção. “Com os links, as plataformas conseguem rastrear as outras páginas com aquele mesmo conteúdo. É responsabilidade da plataforma garantir a indisponibilização quando cientificada pela vítima”, garante a advogada. No caso de fotos e vídeos íntimos divulgados em sites pornográficos, a situação é um pouco mais complicada. Isso, porque, em grande maioria, o início da investigação para localizar o agressor ocorre por meio dos provedores de hospedagem. “Esses casos podem demorar um pouco mais, principalmente porque muitos conteúdos ilegais circulam nesses sites, mas não é impossível”, explica.
Lei Carolina Dieckmann
Em 2012, a atriz Carolina Dieckmann teve o celular invadido e fotos íntimas divulgadas. O caso repercutiu e criou-se a Lei 12.737, no intuito de punir quem cometer o mesmo tipo de crime. Segundo a lei, “invadir o dispositivo de outrem, ligado ou não à rede, por violação indevida de um mecanismo de segurança e para obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem a autorização do proprietário do dispositivo ou instalação de vulnerabilidades para obter vantagem ilícita é crime passível de pena de reclusão de três meses a um ano e multa”.
No entanto, a advogada explica que a lei não regulamenta o conteúdo exposto. Mas, sim, a invasão do dispositivo. “Se a pessoa estiver com o celular sem senha, aberto e entrega na mão de alguém com acesso ao conteúdo armazenado, a lei Carolina Dieckmann não se aplica. Neste caso, só responde criminalmente se obter as informações utilizando recursos para invadir o celular sem a autorização do proprietário. No que tange à divulgação das imagens, se aplicariam outras leis. Por isso, é tão importante procurar um advogado, para entender exatamente qual o caso de determinada vítima”, declara.
Susto
Imagine receber uma mensagem de um completo desconhecido pelo Facebook dizendo que um vídeo íntimo seu está circulando pela internet? Foi o que aconteceu com uma jovem estudante cuja identidade prefere manter em sigilo. Na época, ela tinha 20 anos e havia tido um único namorado. “Ele contou que tinha recebido o vídeo em um grupo e que havia sido encaminhado meu nome junto. Fiquei muito assustada e pedi para ele me enviar no WhatsApp. Quando eu vi o vídeo, fiquei muito aliviada, porque não era eu. Inclusive, comecei a rir, não fiquei preocupada. Até mostrei para o meu namorado e para os meus pais na época e rimos da situação”, afirma.
O que a jovem não imaginava é que em algumas horas começaria a receber dezenas de mensagens de pessoas do Brasil inteiro no perfil que mantinha no Facebook. “Meu psicológico ficou muito afetado. Até porque viralizou tanto que pessoas próximas, vizinhos e amigos achavam que, de fato, era eu. As duas pessoas apareciam no vídeo de lado. O cabelo da menina era parecido com o meu, e o do rapaz era parecido com o do meu namorado. Foram três meses em que eu chorava todos os dias. Procurei a polícia, prestei depoimento, mas, no meu caso, a situação era um pouco mais complicada, porque não era eu quem aparecia no vídeo. O problema foi quem associou meu nome ao vídeo e disparou essas mensagens na internet”, conta.
Um tempo depois, a jovem e a família encontraram o vídeo original em um site de conteúdo adulto. Ela acredita que alguém tenha visto o vídeo, achado parecido com ela e o namorado e espalhado as informações falsas por maldade. “Se eu já sofri e nem era eu, imagina uma pessoa que realmente tem suas fotos ou vídeos vazados. Acho que por isso a gente precisa ter cuidado com a nossa imagem. Seja mantendo tudo bem seguro ou escolhendo bem em quem se confia para compartilhar esse tipo de conteúdo”, lembra a jovem.
A delegada de Polícia Civil concorda: “É preciso tomar cuidado. Portanto, a cada dia fica mais claro, é extremamente importante utilizarmos a tecnologia com cautela e características mínimas de segurança: senhas, configurações em duas etapas, não clicar em links de mensagens desconhecidas, além de evitar indicar localização e rotinas”, adverte.
Sociedade
Vivian ainda diz que as mulheres são mais atingidas porque sofrem com o resquício de uma sociedade em que a mulher é subjugada por sua sexualidade ou por sua liberdade sexual. “Desse modo, após fatos dessa natureza, com o objetivo de minimizar os danos sofridos, que podem ter reflexos profundos e de longo prazo, é muito importante o apoio emocional da vítima, pela família, amigos e profissionais como psiquiatras e psicólogos, numa rede de apoio para que situações da mesma natureza não reincidam ou, até mesmo, afetem pessoas próximas”, enfatiza.
Mantenha senhas seguras. Algumas dicas importantes são:
Nunca compartilhar suas senhas com ninguém;
Escolher senhas longas, que sejam difíceis de descobrir, incluindo letras, números e caracteres especiais;
Usar uma senha diferente para cada conta. Há aplicativos disponíveis que podem te ajudar a gerar senhas fortes e administrar todas elas;
Habilitar a autenticação de dois fatores em suas contas do Facebook e Twitter.
Do que as pessoas têm mais medo?
Um estudo realizado pela multinacional Avast revelou quais são alguns dos maiores receios dos usuários de internet em vários países diferentes. Ouvindo pessoas de 11 nacionalidades, o estudo buscou descobrir do que as pessoas têm mais medo de verem sendo vazado: fotos íntimas ou dados bancários.
Em todos os países, as pessoas responderam que preferem ter fotos íntimas vazadas a ter informações sigilosas de banco expostas.
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